sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Aniversário do P´RA TI


Intervenção na conferência de imprensa dia 23 de Julho de 2010

O Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR registou 39 mulheres assassinadas vítimas de violência doméstica, sendo 33 delas vítimas de homicídio, às mãos de maridos, companheiros, namorados, ex-maridos, ex-companheiros e ex-namorados. Foram ainda vítimas de homicídio 11 pessoas (vítimas associadas), incluindo filhos, pais, outros familiares e conhecidos das vítimas. E, uma vez mais, o Porto vem à frente, com 7 homicídios e 17 tentativas de homicídio de um total de 37 tentativas de homicídio.
Olhando estes números assustadores de mulheres mortas pelos seus companheiros ou ex-companheiros (maridos, companheiros e namorados) afigura-se necessária uma profunda reflexão na sociedade portuguesa sobre a problemática da Violência Doméstica e em particular da Violência contra as Mulheres nas Relações de Intimidade.
Porque motivo continuam alguns homens a subjugar as suas companheiras vendo-as como sua posse? Exigindo-lhes total submissão às suas vontades, não permitindo às suas companheiras fazerem uso do seu direito a terem vontade própria, a decidirem da sua vida ou a rejeitarem uma relação que não as satisfaz.
A reflexão e o debate sobre esta questão são imprescindíveis na sociedade portuguesa.
No ano de 2009, as denúncias de crimes de violência doméstica, contra cônjuge ou análogo, ascendem(segundo os dados de relatório anuam do MAI) a 23259 participações, sendo o Porto, com 6562 participações, uma das regiões com maior incidência.
A UMAR é pioneira no combate à violência sobre as mulheres e neste longo percurso de mais de trinta anos produziu conhecimento e adquiriu experiência.
Desde então temos observado uma grande evolução na sociedade mas há ainda um longo percurso pela frente, desde já ao nível da intervenção com as vítimas, estas mulheres têm de ser respeitadas, têm de ser tratadas como cidadãs de pleno direito que encontraram no seu percurso de vida um criminoso cujo comportamento, esse sim, tem de ser reprovado por toda a sociedade, é importante lembrar, que este crime é um crime público, todas/os nós temos o dever de o denunciar.
É necessária uma profunda transformação das mentalidades, não só do público em geral mas também dos profissionais das organizações e instituições, públicas ou privadas, por onde passam estas mulheres. Não podemos esquecer que estão sob ameaça, coagidas, amordaçadas, muitas temem pelas suas vidas e têm motivos muito reais para isso. O passo para a fuga é muito difícil.
Na intervenção técnica com mulheres vítimas de violência confrontamo-nos com diferentes situações e especificidades, a violência doméstica, em particular a violência sobre as mulheres nas relações de intimidade é um fenómeno transversal à classe social, situação económica, faixa etária, etnia ou crença religiosa, é um fenómeno global nas suas consequências e complexo no seu desenvolvimento, exigindo, uma intervenção cada vez mais especializada com vista à sua minimização, e articulada, entre as várias áreas de actuação envolvidas.
O combate contra o flagelo da violência contra as mulheres só poderá ser bem sucedido quando entendido e combatido no seu todo, quando olharmos o fenómeno e actuarmos sobre este de forma harmonizada, ou seja, quando as alterações legislativas, as políticas educativas, as políticas sociais e de reinserção, as políticas para o emprego e formação profissional, as políticas de saúde, ou de apoio ao planeamento familiar, por exemplo; quando todas elas de forma concertada contribuírem para a transformação das mentalidades, para as mudanças educacionais, para novas oportunidades formativas, para a mudança do mercado de trabalho, para a melhoria das políticas de apoio ao planeamento familiar e aos direitos sexuais e reprodutivos, ao que acresce a imprescindível relação subjectiva de ajuda enquanto processo de reparação e reestruturação de uma mulher vítima quando solicita ajuda.
Conseguir concretizar o projecto de autonomização de uma mulher vítima de violência doméstica, passa por garantir a segurança real da mulher e garantir-lhe condições de vida dignificantes e mais justas, além da redefinição da pessoa em termos subjectivos e emocionais. Processo que só pode ser efectuado por etapas, estabelecendo prioridades, em função das necessidades da mulher que pede e necessita de ajuda, e actuando com uma congregação de esforços por parte dos intervenientes envolvidos, num projecto de mudança e autonomização funcional.
Assumindo que todas as instituições têm papéis e atribuições específicas, com metodologias próprias, as mesmas têm de estabelecer uma inter-ligação na sua actuação em que o objectivo último é sempre a resolução do problema da pessoa. Concretamente, consideramos que é fundamental a partilha de conhecimentos e actuações entre os Tribunais, os Centros de Atendimento (nomeadamente a UMAR), as entidades policiais, os hospitais e centros de saúde, a Acção Social, as CPCJ´s, etc.
Enquanto organização que trabalha no terreno com mulheres vítimas de violência doméstica, através dos Centros de Atendimento e Casas de Abrigo, a UMAR tem a percepção dos constrangimentos e verdadeiras dificuldades, na intervenção:

Ao nível das respostas sociais:
- A morosidade das respostas aos pedidos de apoio social, quando uma mulher vítima de violência doméstica sai de casa e se encontra em situação de desprotecção social, acolhida por amigos ou familiares temporariamente e sem condições, ou mesmo quando foi colocada em pensão, a morosidade na resposta impede na prática a redefinição do projecto de vida da mulher, é necessário que a resposta aos pedidos seja imediata, de compromisso e com indicação da data em que irá receber o apoio.
- O indeferimento de pedidos de apoio social, a maioria das mulheres vítimas quando sai de casa deixa de ter acesso ao dinheiro e aos bens do casal, ou seja, tem o dinheiro de bolso que trazia na carteira no momento da saída e só volta a ter acesso aos seus bens após um processo moroso na Justiça, os critérios de atribuição de apoios sociais devem ter em conta a situação específica destas mulheres e das suas crianças e não o seu rendimento, quando têm rendimento acima do indicado na legislação aplicável significa tão somente que esta mulher vai necessitar de apoio pontual.
- A falta de acolhimentos temporários ou de emergência, a saída de casa é sempre um momento traumático e de grande tensão, muitas mulheres necessitam de alguns dias para se reorganizarem e poderem construir o seu novo projecto de vida que demasiadas vezes passa pela integração da mulher com os filhos em Casas de Abrigo, quando, este deveria ser o último recurso a esgotar, muitas mulheres podem continuar na sua área de residência, mantendo o seu emprego e mantendo as crianças nos equipamentos escolares que frequentam. Actualmente a resposta de emergência são as pensões, que não garantem a protecção e segurança necessárias e não têm as condições mínimas, principalmente para mulheres com crianças pequenas.
- A falta de respostas intermédias, as respostas intermédias não existem, se a mulher não tem uma rede social de apoio ou não tem meios económicos suficientes para conseguir uma habitação a única solução passa uma vez mais pela integração em Casa Abrigo. Este problema poderia ser solucionado com apoios ao arrendamento para mulheres vítimas de violência.
- A falta de apoio financeiro pontual, para muitas mulheres vítimas de violência a saída de casa, representa um recomeço total, umas fogem da violência com a “roupa do corpo”, outras com os seus pertences e das suas crianças, muitas vezes precisam de medicação, ou o agressor partiu-lhes os óculos, a prótese dentária ou até mesmo os dentes. Parecem pequenas coisas mas que são fundamentais na vida destas mulheres e das suas crianças. Um pequeno apoio financeiro inicial, para os primeiros dois meses de arrendamento, para os electrodomésticos indispensáveis (frigorífico, fogão, máquina da roupa), para algum mobiliário (mesa de refeições e camas), seria suficiente para que estas mulheres pudessem (re) construir o seu novo projecto de vida livre de violência, evitando situações em que as vítimas, por falta de meios económicos, regressam à relação violenta, regressando mais fragilizadas e defraudadas nas suas expectativas em relação aos apoios existentes.
Ao nível da aplicação da lei:
- A morosidade das decisões judiciais faz com que estas sejam desajustadas à situação das pessoas que delas precisam, o que nos coloca normalmente um problema prático de redefinição do projecto de vida da mulher que tantas vezes passa pela integração da mulher com os filhos em Casas de Abrigo, quando, este deveria ser o último recurso a esgotar.
- A falta de articulação das decisões judiciais quando no âmbito dos processos-crime são decretadas medidas de protecção para a mulher e para os filhos (quanto mais não seja enquanto vítimas indirectas do crime) e os processos de jurisdição de menores tomam decisões que comprometem seriamente a segurança das vítimas, a estabilidade e desenvolvimento dos menores e, consecutivamente, o seu projecto de vida.
- O direito de representação, é imprescindível que seja assegurado o seu direito de representação, tendo em conta a vulnerabilidade e fragilidade com que as vítimas se apresentam, actualmente, a concretização do direito de representação de uma mulher vítima de violência doméstica, que não possa constituir advogado por falta de recursos económicos é morosa, ao contrário do que acontece com um agressor que, quando constituído arguido no processo penal lhe é sempre nomeado um defensor pelo Estado Português, este problema poderia ser solucionado com uma atribuição automática/obrigatória e directa de um patrono para a mulher vítima aquando da apresentação da denúncia de forma a assegurar uma efectivação da igualdade de direitos, da mesma forma que consideramos que os advogados nomeados para assumir patrocínios na área da violência doméstica deveriam ter formação adequada para a temática em questão.
- O ónus da prova, tal como está estruturado no sistema jurídico português, traduz-se num poder/dever que fica a cargo da mulher vítima de violência doméstica, o que dificulta o seu processo de autonomização e efectivação de direitos. Uma das formas de melhorar o sistema seria a prestação de declarações para memória futura sempre por parte das vítimas de violência, evitando várias deslocações a Tribunal para prestar depoimento e uma dupla vitimização, um novo confronto com os alegados agressores/arguidos dada a relação de especialidade existente entre ambos, bem como se evitariam todas as consequências de um stress pós-traumático. Em última instância dir-se-á mesmo que tal medida se traduziria num combate a um sistema penal proteccionista dos arguidos em que o princípio “in dúbio pró reo” é levado aos extremos.
- A duração do processo, apesar dos processos de violência doméstica terem legalmente natureza urgente, a elevada duração dos processos em Portugal demonstra o quanto a Justiça é morosa no nosso país com todas as dificuldades e consequências advenientes. Por outro lado, os processos de divórcio e os processos de jurisdição de menores não são considerados processos urgentes, mesmo quando têm por base o problema de violência doméstica, protelando-se no tempo muito mais do que deveriam. A morosidade das decisões judiciais faz com que as mesmas sejam inevitavelmente desadequadas ao caso concreto, pois, a vida das pessoas não se compadece com a longa espera pelas decisões judiciais. Cumpre ainda salientar que, no decurso dos processos-crime não são tomadas medidas de coacção proteccionistas para a mulher vítima de violência doméstica – que garantam a sua segurança - ou, em alternativa, são aplicadas medidas desadequadas ao caso concreto que em nada protegem as mulheres vítimas de violência doméstica. É necessária uma maior celeridade na imposição de tais medidas, com estabelecimento de prazos processuais para o efeito, e que a medida de prisão preventiva deveria ser expressamente contemplada como medida de coacção possível nos casos de violência doméstica, visto não ser de todo aplicada neste âmbito. Acresce que, a medida de vigilância electrónica não deveria estar dependente do consentimento do arguido/agressor, devendo antes ser aplicada quando a vítima, o Ministério Público e Juiz de Instrução Criminal o autorizassem e, consequentemente, muito mais vezes. Entendemos ainda que, a medida de coacção de afastamento do agressor deveria ser automaticamente aplicada, aquando da constituição de arguido em processo penal, pois, só assim se pode garantir a segurança da mulher e, consequentemente, a efectivação dos seus direitos, impedindo simultaneamente a continuação da actividade criminosa por parte do agressor/arguido.
- Os custos, nas situações em que estamos perante eventuais violações dos direitos humanos, como a violência doméstica, o acesso à Justiça deveria ser gratuito, pelo que os processos judiciais deveriam estar isentos de taxas de justiça, custas e demais encargos processuais.
- A aplicação das sanções, o limite mínimo das penas deveria ser elevado, assim como a imposição do afastamento do arguido/agressor deveria ser decretado como medida acessória da pena obrigatória. Acresce ainda que, as decisões judiciais, tomadas em matéria Penal e em matéria de Família e Menores deveriam ser alvo de uma articulação obrigatória, para que terminassem as contradições e desadequações actualmente patentes nos processos de uma mulher e filhos menores vítimas de violência doméstica com todas as consequências resultantes.

Ilda Afonso, Directora Técnica do P´RA TI.

http://noticias.sapo.pt/info/artigo/1077960.html

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